No século XVIII, a já iniciada Revolução Industrial trouxe junto ao advento do sistema capitalista de produção a ideia do lucro a todo custo. Essa situação resultou nas, cada vez mais frequentes, substituições do trabalho cuidadoso do homem, porém demorado, pelo maquinário descuidado, mas veloz, expoente no cenário.
Isto posto, a substituição da qualidade do produto pela maior produção possível, passou a ser questão de tempo. Na atualidade, principalmente no que tange ao contexto brasileiro, uma das consequências dessa troca é expressa pela eventual ausência do cuidado sanitário com os alimentos produzidos, mesmo com a presença de órgãos reguladores como a ANVISA.
Dessa forma, no dia 13 de agosto de 2019 foi publicado no site Migalhas uma reportagem tratando acerca do REsp 1.801.593 RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, cuja ação movida foi motivada pela visualização de um corpo estranho dentro de uma garrafa de cerveja, que serviria aos seus convidados em uma festa. Portanto, cabe analisar a evolução jurisprudencial até essa decisão, afinal: o dano moral pode ser configurado na ausência de consumo do produto?
O entendimento dos Tribunais de forma pacifica demonstra que quando o alimento armazenado junto de um corpo estranho era consumido, o dano moral ao Autor estava presente.
No entanto, quando o consumo era inexistente, o Superior Tribunal de Justiça compreendia que não devia se falar em dano moral. Prova disso é o REsp 1.674.147 SP, o REsp 1.131.139 SP e o AREsp 1.218.745 SP, que viam o ocorrido, exclusivamente, como um mero dissabor.
Logo, para melhor entender essa questão, veja-se a definição de dano moral abordada pelo doutrinador Sílvio de Salvo Venosa:
Dano moral é o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Nesse campo, o prejuízo transita pelo imponderável, daí por que aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa pelo dano. Em muitas situações, cuida-se de indenizar o inefável. Não é também qualquer dissabor comezinho da vida que pode acarretar a indenização. Aqui, também, é importante o critério objetivo do homem médio, o bonus pater familias: não se levará em conta o psiquismo do homem excessivamente sensível, que se aborrece com fatos diuturnos da vida, nem o homem de pouca ou nenhuma sensibilidade, capaz de resistir sempre às rudezas do destino. Nesse campo, não há fórmulas seguras para auxiliar o juiz. Cabe ao magistrado sentir em cada caso o pulsar da sociedade que o cerca. O sofrimento como contraposição reflexa da alegria é uma constante do comportamento humano universal.
Apesar desses entendimentos anteriores, aparentemente consolidados no Superior Tribunal de Justiça, o caso apresentado (REsp 1.801.593 RS) recebeu um diferente desfecho:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. AQUISIÇÃO DE CERVEJA COM CORPO ESTRANHO. NÃO INGESTÃO. EXPOSIÇÃO DO CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE E SEGURANÇA. FATO DO PRODUTO. EXISTÊNCIA DE DANO MORAL. VIOLAÇÃO DO DEVER DE NÃO ACARRETAR RISCOS AO CONSUMIDOR. STJ – REsp: 1.801.593 RS (2019/0061633-0), Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Publicação: DJ 14/08/2019).
Nessas circunstâncias, a Ministra Relatora Nancy Andrighi utilizou os Artigos 8º e 12 do Código de Defesa do Consumidor para fundamentar o seu entendimento. In verbis:
Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. § 1º Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto. § 2º O fornecedor deverá higienizar os equipamentos e utensílios utilizados no fornecimento de produtos ou serviços, ou colocados à disposição do consumidor, e informar, de maneira ostensiva e adequada, quando for o caso, sobre o risco de contaminação.
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. § 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi colocado em circulação. § 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado. § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I – que não colocou o produto no mercado; II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Assim, a Ministra conheceu e proveu o recurso do consumidor, entendendo que houveram iminentes danos à saúde, baseando-se no Código de Defesa do Consumidor. Deste modo, o quantum indenizatório foi arbitrado em R$10.000,00 (dez mil reais), incidindo sobre ele correção monetária e juros moratórios fundamentados, respectivamente, nas súmulas 54/STJ e 362/STJ. Ademais, os ônus sucumbenciais e os honorários advocatícios, fixados em 10%, ficaram sob encargo da parte recorrida.
Por fim, não há como precisar se será um entendimento pacífico entre os tribunais brasileiros, uma vez que, como demonstrado, as decisões, por enquanto, são díspares. Sobre isto, duas linhas de compreensão do tema vêm se desenvolvendo: uma afirma que há configuração de dano moral sem ingestão do alimento com corpo estranho, e a outra entende que só existe dano quando houver o consumo do produto. Assim, resta, por hora, ao julgador analisar com individualidade cada situação para poder aplicar, dentre os dois entendimentos, a jurisprudência que melhor incide no caso fático.