Jaíne Hellen Machnicki – Advogada
Dia 19 de maio se comemora o dia nacional da doação de leite humano, a referida data visa promover gratidão em relação ao ato da doação, movido especialmente pelo sentimento altruístico das doadoras, visando ajudar aqueles que mais necessitam, as crianças em fase de amamentação.
Segundo Nathalia Schuengue, “a Lei nº 13.227, de 28 de dezembro de 2015, institui o Dia Nacional de Doação de Leite Humano e a Semana Nacional de Doação de Leite Humano, a serem comemorados anualmente. Segundo esta lei, o Dia e a Semana Nacional de Doação de Leite Humano apresentam como objetivos ‘estimular a doação de leite materno; promover debates sobre a importância do aleitamento e doação de leite; divulgar os bancos de leite humano nos Estados e Municípios’.”[1]
Isto porque o leite materno é a principal fonte de alimento dos bebês recém-nascidos, portanto, a doação pode ajudar inúmeras crianças, sobretudo aquelas em situação hospitalar e prematuros. Nas palavras de Nathalia Schuengue:
O leite materno é o padrão ouro para alimentação de bebês, inclusive dos bebês prematuros. É uma substância que possuem muitos componentes fundamentais para a nutrição e proteção contra doenças. Segundo o Ministério da Saúde e a Rede Brasileira de Bancos de leite humano, a cada 1 ml de leite materno doado, pode ser suficiente para nutrir um recém nascido prematuro, dependendo do seu peso, a cada vez que for alimentado. Em média, até 10 recém nascidos são nutridos por dia, com um litro de leite materno doado.[2]
Conforme dados publicados pelo Uol, “o Brasil conta com mais de 200 bancos de leite, que também esclarecem as dúvidas das mães sobre como estimular a lactação”[3] e “os bancos de leite têm funções que vão além do fornecimento do alimento, pois funcionam como uma casa de apoio ao aleitamento materno”[4].
Mas, para além da promoção do aleitamento materno, do sentimento altruístico das doadoras e de toda a preocupação de cunho social e pessoal atinentes ao leite humano, fala-se especificamente em doação porque a comercialização deste material biológico no Brasil é proibida.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 199 versa que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, e complementa no parágrafo 4º do referido artigo que “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados”, terminando taxativamente com a vedação a qualquer tipo de comercialização. A saber:
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
[…]
4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
Ou seja, a motivação para a disponibilização de substâncias de origem humana, nestas incluído o leite materno, necessita obrigatoriamente advir de um sentimento altruísta, de ajuda para com o próximo, sendo absolutamente vedado qualquer tipo de comercialização.
Isto porque, permitir a remuneração de material biológico tornaria as substâncias produtos passíveis de compra e, como em qualquer relação de cunho consumerista, caberia o direito de escolha em relação ao produto que se pretende adquirir, possibilitando até mesmo situações de preconceito e discriminação, além de todas as consequências correlatas, do modo que tal situação, sem dúvida alguma, ensejaria a coisificação do ser humano.
Neste sentido, a remuneração permitiria as lactantes optarem pela venda como um negócio propriamente dito, deixando de fornecer o alimento aos seus filhos ou procurando alternativas pouco recomendadas para aumentar artificialmente a produção. Nas palavras de Marcus Renato de Carvalho:
O debate também questiona se as mulheres deveriam receber pelo leite ou doá-lo de forma autruísta. Os críticos do negócio dizem que a mercantilização do alimento pode estimular as as mulheres a tentar aumentar a sua produção de leite de forma pouco saudável, mascarar problemas de saúde que tornam seu leite inseguro, misturar leite de vaca ao seu para aumentar o volume ou até mesmo deixar de oferecer o peito aos próprios filhos para garantir as vendas.[5]
No que tange a mistura do leite materno ao leite de vaca para ampliar o rendimento, o jornal O Globo Saúde já noticiou que, nos Estados Unidos, onde a venda do material é permitida, “10% do leite materno vendido na web é misturado ao leite de vaca.”[6] e “pesquisadores americanos concluem que prática crescente de compra e venda pela internet não é segura”.[7] A saber:
Um grupo de pesquisadores do Centro de Saúde Biocomportamental do Instituto de Pesquisa do Hospital Nacional Infantil em Cincinnati, nos Estados Unidos, descobriu que 10% do leite materno comprado pela internet é misturado com leite de vaca. Isso é o mesmo que um em cada 10, como ressaltou o novo estudo publicado na revista “Pediatrics”.
Igualmente, tem-se uma preocupação com as grandes industriais que podem vir a dominar o mercado de leite materno, deixando os bancos de leite doado desabastecidos, culminando prejuízos aos mais necessitados. Nas palavras de Marcus Renato de Carvalho:
A comercialização de leite humano deixa muita gente desconfortável. O receio é de que as empresas absorvam grande parte do excesso do líquido e fabriquem produtos caros demais para a maioria das crianças, enquanto bancos de leite sem fins lucrativos ficam desabastecidos.[8]
Considerando isto, qualquer objetivo financeiro advindo da disponibilização é repudiado pelo ordenamento jurídico vigente, vez que todo tipo de substância de origem humana é considerado item juridicamente fora do comércio.
Neste sentido, inclusive, é que no Brasil o leite materno propriamente não se encontra incluído nas disposições da Lei 11.265/2006, que “regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos.”[9]
Soma-se a isto também o contido no Decreto nº 66.183/1970[10], que regulamenta o Decreto-Lei nº 923/1969, e proíbe a venda do leite cru, entendendo-se este, basicamente, como aquele que não passou pelo processo de pasteurização e controle de segurança. A saber:
Art. 1º É proibida a venda de leite cru para consumo direto da população, em todo o território nacional, nos têrmos do Decreto-lei nº 923, de 10 de outubro de 1969.
Parágrafo único. Para os efeitos dêste Decreto, considera-se leite cru aquêle que não preencher as especificações do artigo 4º.
Art. 4º Para os efeitos dêste Decreto, entende-se por leite beneficiado para consumo direto da populção, aquêle que preencha as seguintes especificações:
I – ser pateurizado por processos aprovados em aparelhagem adequadra, provida de dispositivos de contrôle automático, de termo-regulador, de registrador de temperatura (termógrafo de calor) e outros que venham a ser considerados necessários para o contrôle técnico-sanitário da operação;
II – ser padronizado e filtrado por processo centrífugos;
III – atender aso padrões físicos-químicos e biológicos previstos na legislação específica;
IV – ser, após a pasteurização, engarrafado ou empacotado macânicamente e, a seguir distribuído ao consumo ao armazenado em Câmara frigorífica à temperatura máxima de 5º C (cinco graus centígrafos), observando-se o prazo limita de sua distribuição prevista na legislação específica;
V – ser controlado física, química e bacteriológicamente no estabelecimento beneficiador, em laboratório devidamente aparelhado, observando-se os padrões oficiais; e
VI – ser envasado em embalagens invioláveis de vidro, material plástico, cartonato ou similares.
Tem-se, assim, que além da vedação constitucional, a comercialização de leite materno encontra óbice também na normativa infraconstitucional, que proíbe expressamente a venda do leite cru, por questões de segurança.
Diz-se questões de segurança pois, nas palavras de Sara Xavier Nunes, “o leite materno de vendas online pode ser uma fonte de bactérias, normalmente ligadas a más práticas de higiene, que podem ser prejudiciais.”[11]
Conforme noticiado pelo Uol “as mães que vendem o leite na internet conseguem oferecê-lo a custo mais baixo, pois não gastam com processos de pasteurização e testes para verificar se o alimento está livre de contaminação.”[12]
Tanto é que, no Brasil, conforme ilustrado pela gerente do Banco de Leite Humano, “para doar o leite materno, as mães brasileiras passam por uma triagem sorológica para evitar qualquer tipo de contaminação. Depois disso, elas são orientadas sobre como o leite deve ser coletado”[13] e “o próprio banco cuida da retirada, uma vez por semana, do alimento, que será pasteurizado e fornecido para os bebês que necessitam.”[14]
Igualmente, conforme publicação constante no site da Fiocruz, tem-se que no Brasil há um cuidado extremo com a qualidade do leite disponibilizado, sendo que este “é analisado, pasteurizado e submetido a um rigoroso controle de qualidade antes de ser ofertado a uma criança, conforme rege a legislação que regulamenta o funcionamento dos bancos de leite humano no Brasil.”[15]
Portanto, para além de questões sociais, humanitárias e constitucionais, há uma intensa preocupação com a qualidade do leite disponibilizado, cuja fiscalização e controle restariam prejudicados pela comercialização, produzindo reflexos diretos na saúde das crianças que utilizassem o material.
Ainda, para além das questões de segurança, vale destacar que, no Brasil, conforme Resolução nº 171/2006[16], da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mesmo o leite já pasteurizado e disponível em bancos de leite humano não pode ser comercializado, sendo tal considerada infração de natureza sanitária. A saber:
Art. 5º É vedada a comercialização dos produtos coletados, processados e distribuídos pelo Banco de Leite Humano e pelo Posto de Coleta de Leite Humano.
Art. 6º O descumprimento das determinações deste Regulamento Técnico constitui infração de natureza sanitária, ficando sujeito o infrator a processo e penalidades previstas na Lei nº. 6437, de 20 de agosto de 1977, sem prejuízo das responsabilidades penal e civil cabíveis.
Tal vedação se justifica pelos preceitos constitucionais, sobretudo da dignidade da pessoa humana, vez que se trata de material biológico. Conforme noticiado pelo Canal Saúde, “No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também condena a prática de venda de leite materno. Pela legislação brasileira, tecidos, órgãos e fluidos corporais – como leite, sangue e saliva – não podem ser comercializados.”[17]
Não obstante todas as questões supra, basta uma breve pesquisa na internet para se deparar com o aumento elevado do número de matérias a respeito da comercialização de leite materno. Isto porque, conforme ilustrado pelo Canal Saúde, a venda do material humano é permitida por outros países:
Algumas mães de países estrangeiros têm utilizado um método pouco convencional para ganhar dinheiro. Elas utilizam sites e redes de relacionamento virtual para vender leite materno a outras mães que não conseguem amamentar os filhos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o site onlythebreast.com garante que seu sistema de classificação discreto permite a compra e venda de leite materno de forma “limpa e privada”. Outro exemplo é o Eats on Feets , com atuação no Facebook e alcance em países como EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Na Internet, Glenn Snow – cofundador do onlythebreast.com, explica que a ideia de criar o site surgiu depois que sua mulher Chelly se interessou em vender o leite a mais para ganhar um dinheiro extra no fim do mês e notou que outras mães também estavam à procura da mesma coisa, mas não encontravam opções online. Segundo Snow, também era grande o número de mulheres que não conseguiam achar leite materno em hospitais ou bancos de leite. “Chelly me pediu para construir um site dedicado às mães que querem compartilhar seu leite com bebês que precisam”, diz Snow. De acordo com ele, o estoque dos bancos de leite nos Estados Unidos é “extremamente limitado e caro”, o que torna as opções muito limitadas. Apesar da aparente boa intenção, a prática não é recomendada pelos organismos de saúde locais.[18]
A situação supra, no entanto, é amplamente diversa do cultivada no Brasil, onde, felizmente, a cultura da doação tem se sobreposto aos interesses comerciais.
Assim, tem-se que os princípios éticos, a dignidade da pessoa humana, a igualdade e o sentimento altruísta de bem-estar geral devem embasar a doação de leite materno, sendo assegurada a gratuidade em todos os casos, por questões de segurança, fiscalização e qualidade do material disponibilizado.
Destarte, que neste dia 19 de maio de 2022, o sentimento de benignidade esteja presente e que se agigantem as doações de leite materno.
[1] https://pebmed.com.br/dia-nacional-de-doacao-de-leite-humano/#:~:text=Celebrado%20anualmente%20em%2019%20de,e%20proteger%20o%20aleitamento%20materno. – Acessado em 19.05.2022
[2] https://pebmed.com.br/dia-nacional-de-doacao-de-leite-humano/#:~:text=Celebrado%20anualmente%20em%2019%20de,e%20proteger%20o%20aleitamento%20materno. – Acessado em 19.05.2022
[3] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2015/04/03/medicos-alertam-sobre-venda-de-leite-materno-pratica-e-proibida-no-brasil.htm – Acessado em 19.05.2022
[4] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2015/04/03/medicos-alertam-sobre-venda-de-leite-materno-pratica-e-proibida-no-brasil.htm – Acessado em 19.05.2022
[5] http://www.aleitamento.com/banco-leite/conteudo.asp?cod=2029 – Acessado em 19.05.2022
[6] https://oglobo.globo.com/saude/pesquisa-diz-que-10-do-leite-materno-vendido-na-web-misturado-ao-leite-de-vaca-15792202 – Acessado em 19.05.2022
[7] https://oglobo.globo.com/saude/pesquisa-diz-que-10-do-leite-materno-vendido-na-web-misturado-ao-leite-de-vaca-15792202 – Acessado em 19.05.2022
[8] http://www.aleitamento.com/banco-leite/conteudo.asp?cod=2029 – Acessado em 19.05.2022
[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11265.htm
[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/d66183.htm
[11] https://visao.sapo.pt/atualidade/mundo/2022-02-21-crescente-venda-de-leite-materno-online-preocupa-especialistas/ – Acessado em 19.05.2022
[12] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2015/04/03/medicos-alertam-sobre-venda-de-leite-materno-pratica-e-proibida-no-brasil.htm – Acessado em 19.05.2022
[13] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2015/04/03/medicos-alertam-sobre-venda-de-leite-materno-pratica-e-proibida-no-brasil.htm – Acessado em 19.05.2022
[14] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2015/04/03/medicos-alertam-sobre-venda-de-leite-materno-pratica-e-proibida-no-brasil.htm – Acessado em 19.05.2022
[15] https://rblh.fiocruz.br/doacao-de-leite-humano-0 – Acessado em 19.05.2022
[16] https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2006/res0171_04_09_2006.html – Acessado em 19.05.2022
[17] https://www.canalsaude.fiocruz.br/noticias/noticiaAberta/sites-internacionais-oferecem-compra-e-venda-de-leite-materno-2012-10-29 – Acessado em 19.05.2022
[18] https://www.canalsaude.fiocruz.br/noticias/noticiaAberta/sites-internacionais-oferecem-compra-e-venda-de-leite-materno-2012-10-29 – Acessado em 19.05.2022