Marina Lis Fridlund Lemes – Acadêmica de Direito
Larissa Proença Amorim – Advogada
O presente artigo visa exposição geral da Lei 12.764 de 2012, a qual trata da política nacional de proteção dos direitos de pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), trazendo diversos direitos e garantias voltados aos portadores de TEA.
Todavia, denotam-se pequenas incongruências nas disposições da mencionada lei, as quais evidenciam a imaturidade da sociedade brasileira quanto a tratativa deste tema, com elementos que demonstram uma construção histórica segregacionista, pontuando as garantias e direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal, que são apenas reforçados e direcionados às pessoas do espectro autista, bem como a necessidade de renovação da CIPTEA – Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
De antemão cumpre esclarecer brevemente como é definido o Transtorno de Espectro Autista (TEA). Neste sentido, o Ministério da Saúde[1] explica o TEA como uma desorientação do neurodesenvolvimento, ou seja, o autista tem o desenvolvimento neurológico atípico que pode afetar as manifestações comportamentais, dificuldade na comunicação e interação social, assim como pode trazer padrões de comportamento repetitivos, ou estereotipados.
À vista disso, adentrando a esfera jurídica, lembra-se o disposto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece a garantia fundamental à dignidade da pessoa humana, assim como o art. 5º, caput, que como princípio constitucional, garante a todos, igualdade de tratamento perante a Lei.
Ainda no âmbito das garantias fundamentais, imperioso o destaque ao art. 3º, Inciso IV, também da Carta Magna, cujo teor abrange a garantia do bem de todos, descaracterizando quaisquer tipos de preconceitos, ou formas de discriminação:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Isto posto, à título de curiosidade, pontua-se que a primeira utilização do termo “autista”, fora usada por Paulo Eugen Bleuler – renomado psiquiatra suíço por este fato – a fim de descrever um sintoma de esquizofrenia, em 1911.
Desta forma, faz-se um breve destaque ao lapso temporal, da árdua luta de familiares e profissionais a saúde, desde o primeiro diagnóstico de TEA, até um definitivo reconhecimento das pessoas autistas, pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, foi sancionada a Lei 12.764, em 27 de dezembro de 2012, vulgarmente conhecida como a Lei Berenice Piana, que devidamente reconhece a condição a pessoa com o Transtorno de Espectro Autista, assim como suas garantias e direitos.
Nesse sentido, aduz a doutrina de Caminha:
Atualmente no contexto jurídico brasileiro os autistas possuem direitos e garantias regulamentados. Entretanto, a luta para a conquista de regulamentação específica não foi imediata, em razão do fato de falta de informação sobre o assunto. Os familiares destes portadores conviviam com problemas sérios na patologia de suas crianças, pois diversas vezes o comportamento demonstrado era considerado como normal ou até mesmo equiparado a esquizofrenia ou outro distúrbio psiquiátrico (CAMINHA et al, 2016, p. 13).[2]
Neste ponto, o art. 1º, § 1º, I e II, da Lei 12.764, traz o que se considera a pessoa autista, para os devidos fins legais, senão vejamos:
Art. 1º Esta Lei institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabelece diretrizes para sua consecução.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do espectro autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada na forma dos seguintes incisos I ou II:
I – deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II – padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos.
Condignamente, os parágrafos 2º e 3º, o art. 1º desta Lei, reconhecem a pessoa autista como PCD (pessoa com deficiência), para os devidos fins legais, bem como permite a priorização de atendimento nos locais públicos e privados, haja vista do reconhecimento de PCD:
§ 2º A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.
§ 3º Os estabelecimentos públicos e privados referidos na Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, poderão valer-se da fita quebra-cabeça, símbolo mundial da conscientização do transtorno do espectro autista, para identificar a prioridade devida às pessoas com transtorno do espectro autista. (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
Inobstante, no discorrido desta Lei, sobrevém o art. 3-A reforçando a questão de prioridade ao atendimento a autistas, tanto nos serviços públicos, quanto privados, garantindo ainda, especialmente, o acesso prioritário à saúde, educação e assistência social:
Art. 3º-A. É criada a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea), com vistas a garantir atenção integral, pronto atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados, em especial nas áreas de saúde, educação e assistência social. (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
Oportunamente, partindo do pressuposto de reforços trazidos pela Lei Berenice Piana, faz-se luz ao art. 4º, que prontamente se elenca às garantias e princípios constitucionais, trazendo segurança ao autista à igualdade de tratamento, bem como à dignidade da pessoa humana, como demonstrado abaixo:
Art. 4º A pessoa com transtorno do espectro autista não será submetida a tratamento desumano ou degradante, não será privada de sua liberdade ou do convívio familiar nem sofrerá discriminação por motivo da deficiência.
Ainda neste interim, também se torna válido ressaltar o art. 3º da mesma Lei, haja vista que elenca todos os Direitos e garantias dos autistas, que nada mais são do que os mesmos direitos e garantias trazidos pela Constituição Federal, que se transcorrem pelo art. 1º e 5º, CF.
Assim, pontua-se abaixo o rol de garantias trazidos pela Lei 12.674, veja-se:
Art. 3º São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
I – a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;
II – a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;
III – o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:
a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;
b) o atendimento multiprofissional;
c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;
d) os medicamentos;
e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento;IV – o acesso:
a) à educação e ao ensino profissionalizante;
b) à moradia, inclusive à residência protegida;
c) ao mercado de trabalho;
d) à previdência social e à assistência social.Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2º, terá direito a acompanhante especializado.
A partir do disposto, comenta-se brevemente a necessidade da sociedade brasileira – em decorrência da construção histórica e segregacionista – em criar Lei específica para assegurar direitos e garantias, que na verdade deveriam ser presumidas da Magna Carta por simetria a qualquer ser humano.
Em verdade, além de trazer garantias e direitos fundamentais, especificamente entornadas aos autistas, a Lei 12.764 criou uma política nacional que visa a proteção dos autistas, trazendo a obrigatoriedade do Sistema Único de Saúde em ter atendimento e tratamento especializado.
Todavia, o grande destaque tange à CIPTEA (Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista), que possibilite ao autista seus devidos atendimentos preferenciais.
A referida carteira CIPTEA é na verdade um documento Federal, expedido por órgão específico, como se fosse uma carteira de identidade, e está disposta no art. 3º-A, e seus incisos:
Art. 3º-A. É criada a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea), com vistas a garantir atenção integral, pronto atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados, em especial nas áreas de saúde, educação e assistência social. (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
§ 1º A Ciptea será expedida pelos órgãos responsáveis pela execução da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante requerimento, acompanhado de relatório médico, com indicação do código da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), e deverá conter, no mínimo, as seguintes informações: (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
I – nome completo, filiação, local e data de nascimento, número da carteira de identidade civil, número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), tipo sanguíneo, endereço residencial completo e número de telefone do identificado; (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
II – fotografia no formato 3 (três) centímetros (cm) x 4 (quatro) centímetros (cm) e assinatura ou impressão digital do identificado; (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
III – nome completo, documento de identificação, endereço residencial, telefone e e-mail do responsável legal ou do cuidador; (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
IV – identificação da unidade da Federação e do órgão expedidor e assinatura do dirigente responsável. (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
Contudo, com a Lei 13.977 sancionada em 2020, conhecida como Lei Romeo Mion, obteve-se a inclusão de alguns parágrafos no artigo supra. Nesse sentido, imperioso destacar o parágrafo 3º, do art. 3º-A, veja-se:
3º A Ciptea terá validade de 5 (cinco) anos, devendo ser mantidos atualizados os dados cadastrais do identificado, e deverá ser revalidada com o mesmo número, de modo a permitir a contagem das pessoas com transtorno do espectro autista em todo o território nacional. (Incluído pela Lei nº 13.977, de 2020)
Assim, claramente expresso na Lei brasileira, a validade de 5 anos, de um documento federal, que genericamente é usado para comprovar que o autista, realmente é autista, e logicamente tem direitos e garantias em evidência.
Apesar disso, de certo ponto de vista pode ser contraditório a exigência do legislador, em determinar a validade de 5 anos de um documento que comprova que o autista, realmente está no espectro, sendo que se trata de uma falha nas conexões neurológias[3], de tal forma que o indivíduo autista, não deixará de ser autista.
Portanto, de certa forma, desnecessária a necessidade de passar por reavaliações a cada 5 anos para que seja possível manter a CIPTEA dentro da validade.
Diante do exposto, conclui-se que a Lei 12.764, em grande parte, apenas exerce o papel já configurado pela Constituição Federal, no que tange às garantias e Direitos fundamentais, que em verdade, deveriam ser presumidos a qualquer pessoa, independente de estereótipo, ou condição de saúde.
Todavia, torna-se realmente necessária a criação de uma Lei específica, que traga à tona essas garantias e direitos, aos autistas, em razão da imaturidade ainda persistente na sociedade brasileira.
Ainda assim, também se pontua diante da conclusão, igualmente a imaturidade brasileira, ao obrigar o autista a revalidar sua CIPTEA a cada 5 anos, se levado em consideração que o autista, sempre será autista.
[1] https://www.saude.pr.gov.br/Pagina/Transtorno-do-Espectro-Autismo-TEA#:~:text=O%20transtorno%20do%20espectro%20autista,repert%C3%B3rio%20restrito%20de%20interesses%20e>
[2] Autismo: vivências e caminhos [livro eletrônico]/organizado por Vera Lúcia Prudência dos Santos Caminha …[et al]. -– São Paulo: Blucher, 2016. 3 Mb ; ePUB.
[3] https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/transtorno-do-espectro-autista-tea/