CARLYLE POPP²
Sistema de franquia empresarial: A nova lei não se aplica à análise e disciplina do contrato de franquia, mas do próprio sistema de franquia como um todo. Ou seja, o legislador se preocupa com a franquia enquanto modelo de negócio e não somente com regras contratuais.
Tipicidade do contrato de franquia: Conforme aduz Orlando GOMES[3] “as relações econômicas travam-se sob as formas jurídicas que, por sua frequência adquirem tipicidade. As espécies mais comuns são objeto de regulamentação legal, configurando-se por traços inconfundíveis e individualizando-se por denominação privativa. É compreensível que a cada forma de estrutura econômica da sociedade correspondam espécies contratuais que satisfaçam às necessidades mais instantes da vida social”. A lei estabelece o que configura os elementos conceituais da franquia e, por isso, trata-se de contrato típico.
Nem todos concordam com essa assertiva. Fabio Ulhoa COELHO, por exemplo, afasta a tipicidade, em essência, porque a lei específica se restringe a trazer regras específicas mais sobre os procedimentos de formação do que de execução. Ou seja, por não estabelecer os direitos e deveres de cada parte a atipicidade não estaria afastada[4].
Não é, contudo, a expressa referência e descrição legal dos deveres e direitos de cada parte que confere tipicidade, mas sim a presença ou não dos seus elementos conceituais, descritos em lei. Estando presentes esses, o contrato existe e é típico[5].
Características do contrato: Primeiramente é fundamental destacar que não é o nome inserido no termo contratual que fará dele uma franquia ou não. Como dito, franquia é um contrato típico e, portanto, carece de seus elementos estruturais para assim ser considerado. Se só há a cessão da marca não será franquia. Pode ser concessão ou licenciamento, por exemplo. Se só transferência de know-how ou tecnologia, igualmente, não será franquia. Se há somente consultoria de serviços, também de franquia não se trata. Franquia exige a existência cumulativa de elementos caracterizadores de uma relação jurídica contratual complexa.
Trata-se de contrato bilateral nos seus efeitos, visto que gera obrigações para ambas as partes. Essas obrigações são onerosas e comutativas, pois previamente estabelecidas e conhecidas entre as partes. Salvo acordo recíproco, o contrato deve obedecer aos ditames e previsões da circular de oferta. Fruto da bilateralidade há efeitos próprios como o exercício do direito de retenção, a exceção do contrato não cumprido, a exceção de cumprimento incompleto ou defeituoso e o equilíbrio no que tange à distribuição dos riscos. Ambas as partes poderão se valer destas consequências.
A onerosidade traduz a vantagem contratual recíproca, pois ambas as partes têm direitos e deveres e visam à obtenção de vantagens, no caso o lucro. Essas obrigações e direitos são previamente conhecidas pelas partes, não estando sujeitos à álea contratual. Isso não significa que não haja risco econômico, próprio das atividades empresariais. Diversas circunstâncias podem gerar um resultado inesperado, ou seja, prejuízo e não lucro. Esse fato não interessa a nenhuma das partes. Ao franqueado porque fez investimentos e não terá resultados positivos; ao franqueador porque escolheu um parceiro que não valorizará a propriedade intelectual em dado território, resultando danos mediatos e imediatos, como a perda do mercado local.
O contrato se situa entre aqueles de duração, sendo normalmente de trato sucessivo, pois a cada período novas obrigações devem ser satisfeitas e o preço pago (royalties). Se houver preço parcelado, para essa rubrica será de execução diferida. Aliás, sua continuidade por longo espaço temporal é garantia para as partes, quer para o franqueado para retirar os investimentos realizados, quer para o franqueador no sentido de manter ativa e geradora de lucros sua marca.
Em razão das cláusulas contratuais serem padronizadas é evidente o aspecto adesivo, muito embora haja características e regras próprias na fase de negociação com vistas à formação de um consentimento livre, transparente e refletido. Apesar disso, o aderente está garantido pelas previsões legais que asseguram interpretação favorável ao seu favor na hipótese de ambiguidade e em havendo conflito entre cláusula impressas e manuscritas, estas prevalecerão.
Exatamente essa fase de negociações com requisitos próprios e necessários em razão da lei que confere certa solenidade ao contrato que vão além da mera forma escrita. Não há franquia verbal válida, muito menos decorrente de consentimento tácito. A forma escrita é ditame que decorre da lei, além da necessidade da assinatura de duas testemunhas.
O registro junto ao INPI não é necessário para a validade do contrato de franquia, somente sendo exigível quando se tratar de transferência de tecnologia, mas sem requisito de validade, e sim de eficácia perante terceiros[6].
Remuneração direta ou indireta: O preço do contrato de franquia não necessita ser pago em dinheiro ou valor fiduciário correspondente, como acontece com a compra a venda. Fruto da onerosidade e do caráter empresarial (habitualidade), ambas as partes visam ao lucro. A remuneração pode ser em outra forma, como a permuta por outro direito, a participação em outro negócio, prestação de serviços, enfim sob qualquer que represente preço e não atinja a comutatividade, sob pena de não ser franquia, mas outra figura como o comodato, doação ou outro contrato, ainda que atípico.
A remuneração do franqueador usualmente se traduz em três rubricas:
Exclusividade: A lei estabelece que a franquia pode se dar com caráter exclusivo, ou não. Essa exclusividade diz respeito ao território previsto no contrato e alertado na circular de oferta. Ou seja, exclusivo ou não, o franqueado deverá ser informado das condições específicas de sua operação. A não exclusividade pode dizer respeito ao franqueador ou a outro franqueado. Destarte, não há vedação legal a concorrência entre as partes desde que previamente convencionado. O que não é possível é a restrição do território ou a concorrência quando o contrato estabelecia exclusividade. A permissão da concorrência pode se dar em relação a gamas/tipos de clientes ou a faixa territorial seja por município, bairro ou raio.
De outra banda, também pode não haver exclusividade do franqueado junto ao franqueador. Nessa hipótese aquele poderia desenvolver outra atividade sem prejuízos da franquia, concomitantemente com esta. Não, porém, atividades que a prejudiquem, salvo se expressamente autorizadas no contrato.
Caráter intuitu personae: Trata-se de contrato pessoal, quer em relação ao franqueador o que parece de fácil visualização, quer em relação ao franqueado, pois as habilidades pessoais deste se traduz em um requisito importante para a sua aceitação como parte do contrato. Ele receberá treinamento e terá equipe própria. Portanto, ainda que o franqueado seja pessoa jurídica, o que normalmente acontece, a alteração do seu contrato social com mudança substancial de sócios poderá implicar em hipótese de resolução do contrato por inadimplemento. Isso poderá acontecer mesmo na substituição de meros gestores, pois a estes cabem a condução da atividade franqueada.
Espécies de franquia: Três são as espécies de franquia: a) franquia de comercialização; b) franquia de indústria; c) franquia de serviços.
Ausência de vínculo empregatício: A exemplo da lei anterior, a atual também afasta o vínculo de emprego entre franqueador (empregador) e franqueado (empregado). Foi mais elástica agora ao incluir os funcionários do franqueado em relação ao franqueador, ainda que durante o período de treinamento. Muito embora haja decisões das cortes trabalhistas no sentido de que a existência do contrato de franquia não é suficiente para afastar a relação empregatícia, desde que presentes os requisitos legais, a regra em comento deve ser privilegiada.
Primeiramente porque não é situação desconhecida do franqueado ou de seus colaboradores. Segundo porque a norma legal busca conjugar a livre iniciativa com os valores sociais do trabalho[8]. Por fim, porque o franqueador não tem qualquer poder de direção sobre o franqueado ou seus funcionários, salvo naquilo que disser respeito aos objetivos da franquia, não suficientes para excepcionar essa regra.
Exceção deve ser considerado quando o contrato de franquia for instrumento de fraude. Ou seja, quando de fato não houver franquia, mas mero instrumento para transferir os riscos da atividade empregatícia e seus encargos legais e sociais a terceiros. Ou seja, o franqueado e seus colaboradores são de fato empregados do franqueador e por ele dirigidos e subordinados.
Ausência de relação de consumo: Muito embora os tribunais já viessem reconhecendo a inexistência de relação de consumo entre franqueador e franqueado, de forma correta o legislador previu o tema. De fato, franqueado não é consumidor em relação ao franqueador, pois ausentes os requisitos do artigo 2º da legislação específica[9].
Há, porém, relação de consumo entre o franqueado e seus clientes, assim como pode haver responsabilidade solidária e/ou subsidiária perante o franqueador com relação aos danos sofridos por aqueles em suas relações junto ao franqueado[10].
Ademais, mesmo em não se tratando de relação de consumo, às vítimas de eventual acidente de consumo[11], bem como aqueles expostos às práticas comerciais vedadas pelo artigo 29 do Código de Defesa e Proteção do Consumidor[12].
Titularidade da propriedade intelectual: O cerne do contrato de franquia é a cessão de marca ou outro objeto de propriedade intelectual. Por evidente que o legítimo para realizar tal contrato é o titular do direito devidamente registrado no órgão competente. Legitimidade é a posição do sujeito de direito em relação ao objeto, mediato e imediato, da relação jurídica que pretenda praticar.
Não há necessidade, contudo, que no momento da formalização contratual o direito já esteja registrado. Basta a existência de processo para tal mister[13].
A lei igualmente, concede a legitimidade àquele que está devidamente autorizado, mediante cessão contratual, pelo titular do direito.
Se quem fez a cessão não é o titular do direito, quer porque não possui o registro, quer porque não está em curso, quer porque já foi indeferido ou ainda não se trata de cessionário ou autorizado para assim proceder, há ilegitimidade do franqueador, pois ausente capacidade negocial específica. Nesse caso o contrato padecerá de nulidade ab initio, sujeitando o franqueador às perdas e danos.
Outra circunstância será a da ilegitimidade superveniente. Nessa situação o contrato será resolvido, até porque se trata de relação jurídica de trato continuado. Conforme o caso a resolução será com culpa ou sem. Na primeira hipótese o franqueador será responsável pelos danos frutos do inadimplemento.
Dois pontos serão as hipóteses mais comuns: a) indeferimento do registro ou perda do direito ao uso da marca (por falta de renovação, por exemplo); b) término do período de cessão, resolução do contrato ou outra circunstância que gere o perecimento do cessionário para ceder a propriedade intelectual a terceiros.
Ambas as circunstâncias geram a extinção do contrato de franquia, que por falta de propriedade intelectual, quer por ausência de titularidade. Essas circunstâncias podem ou não gerar indenização, dependendo do fato de ser ou não prevista tal ocorrência na circular de oferta e/ou no contrato de franquia.
Quem pode ser franqueado ou franqueador: O referido parágrafo esclarece quem pode ser franqueado ou franqueador. Tanto um como o outro podem ser pessoas físicas ou jurídicas. Aquela hipótese é menos comum, mas possível. O desenvolvimento da atividade deverá se dar mediante firma individual em que há unidade de patrimônio entre as atividades. Se for pessoa jurídica não importa o modelo. Pode ser sociedade empresária ou simples, unipessoal (a chamada empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI), por quotas de responsabilidade limitada ou mesmo por ações, para se restringir aos modelos mais comuns.
Podem ainda compor as relações de franquia as empresas estatais (Correios já faz isso há tempos) ou mesmo as entidades sem fins lucrativos, não importando o polo que ocupam e independentemente do segmento de atividade.
Empresas estatais são as empresas públicas ou as sociedades de economia mista nas quais o poder de gestão pertence a uma pessoa jurídica de direito público, municipal, estadual ou federal. Nas empresas públicas a totalidade do patrimônio pertence a elas, quanto que nas sociedades de economia mista somente a maioria do capital social.
A lei não se refere especificamente às fundações, mas deve merecer interpretação que a elas se estenda a autorização dada às entidades sem fins lucrativos, desde que não contrarie o fim a que se destinem.
Agregue-se ainda que nada impede que a circular de oferta seja entregue a uma pessoa física e o negócio seja realizada por pessoa jurídica que ela faz parte ou venha a fazer parte, ainda que após a contratação.
[1] Art. 1º Esta Lei disciplina o sistema de franquia empresarial, pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento. § 1º Para os fins da autorização referida no caput, o franqueador deve ser titular ou requerente de direitos sobre as marcas e outros objetos de propriedade intelectual negociados no âmbito do contrato de franquia, ou estar expressamente autorizado pelo titular. § 2º A franquia pode ser adotada por empresa privada, empresa estatal ou entidade sem fins lucrativos, independentemente do segmento em que desenvolva as atividades.
[2] Mestre em Direito Público pela UFPR. Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná, da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, do Conselho Editorial da Juruá Editora, do Instituto de Direito Privado e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Foi professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (mestrado) do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) até 2012. Advogado Sócio de Popp Advogados Associados. Ex-professor da PUC/PR. É escritor. Coordenador e colaborador da antologia Instruções à Cortázar: homenagem de cronópios, famas e esperanças. Juruá Editora, 2014 e da antologia KAFKA: Uma metamorfose inspiradora. Juruá: Curitiba, 2015. Autor do romance O senhor da minha história. In verso: Curitiba, 2016. Autor de diversas obras jurídicas. Foi presidente da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Atual vice-presidente. Advogado atuante na área de franquias.
[3] Contratos. 17ª Ed., p. 102
[4] Curso de Direito Comercial. V. 1, p. 126-127.
[5] No mesmo sentido v. FERNANDES, Marcelo Cama Proença. O contrato de franquia empresarial. p. 38-40
[6] No igual sentir v. FERNANDES, Marcelo Cama Proença. Ob. cit., p.45.
[7] Fernandes, Marcelo Cama Proença. Ob. Cit., p. 60.
[8] Art. 1º, inc. IV, CF.
[9] Art. 2º CDC: Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único: Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
[10] Ver arts. 12 e 14 do CDC. Especial atenção ainda ao art. 13 visto que franqueador e franqueado podem ser considerados comerciantes, ou, segundo a dicção legal vigente, como empresários, desde que tenham atividade organizada destinada à produção ou a circulação de bens ou de serviços.
[11] Art. 17 CDC
[12] Art. 29: Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. Essa regra resulta que os arts. 30/54 podem ser aplicados a outras relações, ainda que não de consumo.
[13] V. art. 2º, inc. XIV.